Sêu Betinho
por Alcione Araújo
Texto extraído do livro Mobilização: Betinho & a cidadania dos empregados de Furnas, de 1998.
“O senhor é um santo. Sêo Betinho” – dizia a mulher humilde, segurando emocionada a mão de Betinho entre as suas. “Foi Deus que mandou o senhor pra nós” – ela insistia, enquanto Betinho sorria o seu sorriso maroto, tentando disfarçar o constrangimento. Estávamos nas proximidades do Teatro Municipal, em plena Semana da Arte contra a Fome. Cenas como estas estavam se tornando corriqueiras no cotidiano de Betinho.
Com a sua voz baixa e mansa, falando com simplicidade e até com uma certa doçura; o olhar suave que pousava sobre as pessoas, os gestos tranquilos, Betinho parecia mesmo um santo.
Porém, a canonização do sociólogo provinha mais da esperança que ele fazia renascer nos abandonados do que propriamente da sua beatitude. Para os desesperados, bondade é fruto de milagre. Se é bom, só pode ser santo.
Mas de santo, Betinho não tinha nada.
O que Betinho tinha era uma aguda consciência social aliada a uma vontade urgente, uma determinação atrevida e uma objetividade criativa para enfrentar os problemas do homem brasileiro, numa época em que o individualismo e a diferença fechavam os olhos para o crescimento avassalador da massa de despossuídos.
Betinho sabia que se escondiam, e ainda se escondem, as forças que historicamente têm mantido o apartheid social no país. Era esperto, mas, manhoso, não deixaria transparecer sua esperteza. Cauteloso, de uma cautela que não tinha a objetividade. Expunha seus argumentos com lacunas intencionais, quando deixava pairar um sorriso reticente, para que o interlocutor ao preenchê-las com sugestões e novas idéias também se sentisse autor da proposta. Era poderoso porque lutava por causas justas e coletivas, mas nunca perdeu a imagem de fragilidade. Estava sempre do lado certo; ganhou algumas batalhas e comemorou com a modéstia de quem sabia que a guerra era longa. E quando errou, assumiu o erro com a firmeza dos humildes.
Viveu momentos dramáticos – no trabalho e com a saúde – mas nunca perdeu a tolerância, a esperança, a serenidade, nem o humor. Conseguiu achar sempre um viés visível nas situações mais difíceis ou diante de poderosos enfatuados.
Tinha um espantoso poder de persuasão porque sabia confrontar teorias, política, econômica e social, com a urgência dos problemas visíveis e palpáveis: fome, miséria, educação, cidadania, direitos humanos, ética, etc…
Era um estrategista. Inventou que a cultura e a mídia seriam seus aliados naturais. E a grande maioria aderiu. As causas justificavam o empenho e as suas idéias eram, ao mesmo tempo, simples e mirabolantes: exeqüíveis e delirantes.
As campanhas desconcertavam os poderosos e inundavam de esperança milhões de excluídos anônimos – que passavam a frequentar páginas de jornal e telas de televisão de onde eram também excluídos. E tudo era impregnado de esperança e de uma estranha emoção – como se, enfim, avançássemos para uma sociedade solidária.
Betinho partiu. Ficamos todos meio órfãos. Mas, depois de conviver e de aprender com ele, alguma coisa mudou em nós. Parece que ficamos mais esperançosos, ou que acreditamos mais em nossas próprias forças. Acho que agora posso entender um pouco melhor do que estava falando aquela mulher que disse: “ O senhor é um santo, sêo Betinho. Foi Deus que mandou o senhor pra nós.”