Memória e legado do Betinho- profeta e pastor
por Mauro Morelli
Texto extraído do livro Mobilização: Betinho & a cidadania dos empregados de Furnas, de 1998.
Nosso caminhos se cruzaram em 1981, quando comecei minha missão como bispo fundador da Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti, na Baixada Fluminense.
Depois de dez anos de trabalho do franciscano Paulo Evaristo, pastor na Paulicéia e defensor intransigente da vida com dignidade e liberdade, fui abençoado com o convite para tomar o cajado e rumar para Baixada Fluminense, terra prenhe de esperança, embora torturada pela violência e pela fome. Um retrato em preto e branco do Brasil dos pobres não reconhecidos e respeitados em sua dignidade e lesados de forma permanente e estrutural em sua cidadania.
As análises de conjuntura, estudos e subsídios do Ibase tornaram-se, com o correr do tempo, referencial seguro e indispensável para cumprir uma missão em que o conhecimento da realidade é determinante para a relevância do testemunho e dos serviços pastorais.
Minha compreensão da realidade brasileira, dos processos e caminhos percorridos pelas elites que idealizaram e constituíram um Brasil blasfemo, corrupto e iníquo, devo em grande parte à participação na CNBB e à assessoria do Ibase. Desde 1968, participo de nossa conferência episcopal, de seu testemunho e serviço na defesa e promoção da cidadania, de suas tensões e tentações frente a desatinos dos grandes e poderosos.
Como Ibase e Betinho se identificam, ao longo do tempo foi crescendo nosso relacionamento. Muitos sonhos e pelejas fizeram-nos irmãos e amigos. A democratização da terra, a defesa dos meninos de rua, o combate a todas as formas de discriminação, a promoção da solidariedade para com portadores do vírus da Aids, a luta do Movimento Nacional Constituinte e, por último, a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, levaram-nos a incontáveis papos por telefone e a participar juntos de inúmeras reuniões, viagens, encontros e congressos por todo o território brasileiro.
As mãos de Betinho abriram-me portas para caminhar no meio do povo. Com Betinho aprofundei as lições de meu noviciado pastoral na arquidiocese de São Paulo. Sábio e astuto, ensinou-me a ultrapassar os limites de um dia e as barreiras levantadas pelas forças política que, nas últimas décadas, impuseram ao país um projeto de desenvolvimento concentrador de riqueza e de miséria. Ao lado do profeta das mudanças e do pastor da partilha e da solidariedade comecei a descobrir e adentrar num mundo estranho e distante dos recintos sagrados. Assim, tornei-me colaborador do Pasquim, companheiro e amigo de agnósticos e, quem sabe, ateus. Andamos juntos por toda a parte, em universidades e associações mais diversas, no mundo das artes, do trabalho, do campo, do direito, e da política. Com seu jeito gozador, apresentava-me sempre como o meu bispo. Por outro lado, eu o considerava meu diretor espiritual! Em muitas decisões e opções seu parecer foi determinante. A sua irreverência era carregada de respeito. Graças a ele, ultrapassei os confins dos salvos para caminhar com os tresmalhados. Tomando-me pela mão, forçou-me gentilmente a seguir à risca e com riscos as trilhas que devem ser percorridas por um bispo no exercício do diálogo amoroso da evangelização e no comprimento do mandamento novo. Sem ofensa a quem quer que seja, Betinho parecia-me o pastor de uma igreja que estava fora ou não cabia dentro da própria Igreja!
A seu lado estive na enfermidade e morte de seus irmãos, especialmente Henfil, o sempre saudoso, irreverente e dileto amigo. Com profundo respeito e comoção, recordo a revelação que me fez sobre a qualidade e a beleza do seu amor por Maria, sua companheira e amiga.
Em minha memória e no coração, Betinho permanece apreciado pela grandeza do itinerário percorrido. Entre tantos companheiros e companheiras de longas jornadas e memoráveis campanhas, considero o sociólogo Herbert de Souza, o cidadão Betinho, uma exemplar e estimulante figura humana.
O amor à vida fez Betinho combater a morte todos os dias e a lutar pela defesa e promoção da dignidade do ser humano e da vida com qualidade. Por amor à vida aprendeu a ser generoso e gratuito em seus relacionamentos. Considerando a vida um mistério de comunhão e de solidariedade, foi irmão e amigo de meninos e meninas de rua e prostitutas. Com ternura e devoção se entregou à causa dos portadores do vírus da Aids, vítimas da doença e, acima de tudo, do preconceito e da hipocrisia da sociedade!
Sempre considerei Betinho um homem justo. Não creio que ele cometesse mais do que sete pecados por dia (Provérbios 24,16). Confesso, porém, que fiquei angustiado com o processo de endeusamento a que foi submetido no pico da Campanha da Fome. Elevado às alturas, foi transformado por colaboradores e pela mídia em santo e anjo. Pior que isso, quiseram fazer dele um deus!
Idolatria e cidadania são incompatíveis, segundo a minha compreensão do Evangelho. O ídolo é a caricatura glorificada de seus próprios adoradores. Um ídolo tem sempre os dias contados. Assim aconteceu na Páscoa de 1994 com o episódio de denúncias de doações dos bicheiros.
O profeta experimenta na própria carne os sofrimentos, tensões e tentações da realidade que denuncia. Betinho, achincalhado, não perdeu a credibilidade. Apenas, ficou livre da idolatria! Betinho sabia que Gandhi não foi produto de marketing, mas fruto de um longo processo místico de contemplação da verdade e de encantamento com o mistério da vida. Um caminho de libertação, de certezas e de purificação do egoísmo.
Como acontecia com outros amigos, cristãos confessos e professos, às vezes sentia que minha presença o incomodava por causa de pendências com o Deus de sua infância e juventude. Segundo explicação dada por ele próprio em uma entrevista, rompeu com a prática religiosa para se libertar de tensões e conflitos. É evidente que não se libertou das tensões e conflitos que são normais e constantes na vida do ser humano. Nem mesmo ficou em paz com sua própria decisão. Gostava de afirmar para amigos e companheiros que não sabia se Deus existia e que não desejaria nenhuma celebração religiosa por ocasião de sua morte.
De formação religiosa amadurecida pelos anos de participação na Ação Católica, Betinho revelava em sua vida os valores e energias do Evangelho. A sua experiência de Deus na Igreja, durante a infância e na juventude, levaram-no a um grande amor pela vida e pela dignidade da pessoa humana. Betinho, como ninguém, era testemunha da relevância da fé para a vida do povo. Com que amor e esperança oferecia presença e assessoria às comunidades na base da igreja e da sociedade. No pão da Eucaristia de que se alimentou tantas vezes, descobriu que é amargo e maldito o pão que se come sozinho. Feliz quem parte e reparte o pão, foi o grande anuncio do qual se fez mensageiro por todos os quadrantes do país. Quem reparte o pão, tem assento no banquete da vida. Por isso, sem traumas e sem limites, Betinho será feliz para sempre no regaço de Deus.