Uma breve história de Betinho
Betinho por Betinho
Eu nasci para o desastre, porém com sorte. Nasci vivo e hemofílico em Bocaiúva, Minas Gerais. Era uma madrugada de 3 de novembro de 1935. Luís Carlos Prestes iniciava sua coluna, e eu, minha vida. Não nos conhecíamos. Pensando bem, Prestes, em 35, não estava na Coluna, mas na Intentona, assim chamada pelos militares, que, na quinta linha de meu texto, já começam a perseguir a minha memória.”
Betinho, em Sem vergonha da utopia, p. 14
Quando nasci, e só aí começa a história, a hemofilia começou. Vida e morte juntas na mesma pessoa: a hemorragia no umbigo foi o começo, já que é no umbigo que tudo começa. (…) Era eu de nome Herbert, uma homenagem de meu pai a um artista de cinema alemão. Meu pai era o pioneiro do cinema mudo em Bocaiúva, e Herbert, o artista, vivia em algum Reich. Eu, hemofílico, em Bocaiúva.”
Betinho, em Eu, Arquivo Herbert de Souza, CPDOC/FGV
Tive uma infância marcada (…) pelo fato de ter passado oito anos morando com minha família numa penitenciária, onde meu pai trabalhava. Uma parte da infância e da adolescência eu vivi num outro ambiente inusitado, uma funerária. Acho que ninguém nasceu numa penitenciária e se criou numa funerária. Eu acho que é uma combinação altamente política.”
Betinho, na revista Teoria e Debate, nº 16
A família chorou minha morte e decidiu que eu não iria para um sanatório, mas para o fundo do quintal, para o quarto de Maria Leal [empregada da casa], agora transformado em meu sanatório particular, o único de Belo Horizonte. Um quarto com duas camas, na outra dormia seu Henrique [pai de Betinho], declarado minha companhia. Foi construída uma porteira de madeira que me isolava, atrás das grades, de meus irmãos e irmãs. (…) “Naquele sanatório particularíssimo, eu escutei todas as novelas do rádio. Li todos os livros que me chegavam às mãos, fiz aeromodelismo, aprendi radiotécnica, tentei a escultura. Três vezes ao dia eu tomava a temperatura. Invariavelmente 37 a 38 graus de febre. (…) As minhas chances de salvação eram muito poucas, ou quase nenhuma. Todo mundo chorava. Ninguém desconhecia o resultado desta equação fatal: hemofilia mais tuberculose igual à morte.”
Betinho, em Eu, Arquivo Herbert de Souza, CPDOC/FGV
Betinho, em Sem vergonha da utopia, p. 49
Ao ler o último número da revista semanal O Cruzeiro, a mais importante na época, do grupo de Assis Chateaubriand, eu vi o anúncio de um remédio, Idrazida, apesentado como a mais nova descoberta na cura da tuberculose. Deu-se então em mim uma certeza instantânea: este remédio vai me curar.
Betinho, em Sem vergonha da utopia, p. 51
Desde o momento em que entrei para a Ação Católica, ser católico para mim era ser revolucionário. Não era simplesmente comungar e obedecer regras. Era também transformar o mundo e a sociedade.”
Betinho, em Betinho – sertanejo, mineiro, brasileiro, p. 82
A única utilidade de ser sociólogo é que soa bem. As recepcionistas acham bonito quando você preenche a ficha de registro de um hotel.”
O articulador do possível, de Dorrit Harazim. Em Estreitos Nós, p. 145
Participar do governo João Goulart [Jango] foi uma experiência fascinante. Eu fiquei sete meses no Ministério da Educação e foi a minha primeira experiência de máquina estatal burocrata.
Programa Roda Vida, em 23/12/ 1996
Viver na clandestinidade era tensão permanente e uma preocupação absolutamente constante (…). Não explico como consegui viver nessa época e principalmente como consegui escapar dessa época.”
Os caminhos da democracia, p. 136
“O exílio brasileiro nunca deixou de ser político. A gente, em todos esses lugares, formava grupos de brasileiros, que faziam comitês contra a ditadura. Então, faziam logo um jornal, faziam logo uma publicação, se articulavam com a imprensa local para denunciar os crimes da ditadura. (…) Foi sempre um exílio com essa característica de não parar de trabalhar. E com o sonho da volta.”
Os caminhos da democracia, p. 180 e 181
Para mim, hoje, estar aqui é algo absolutamente fundamental. Eu evito até viajar para fora, porque eu já perdi nove anos fora”
Programa Roda Vida, em 14/12/1987
Referindo-se ao show de Elis Regina no Anhembi (SP): “Uma noite que nunca mais se repetirá para mim no mesmo nível de emoção. Milhares de pessoas, o estádio lotado, cantando em coro com Elis aquele refrão… ‘Meu Brasil/ que sonha/ com a volta do irmão do Henfil….’ Outro momento indescritível. Sem me citar, ela disse para a plateia: ‘E a peça está aqui com a gente’! Quando terminou fomos no camarim para abraçá-la. Nem me lembro direito de como tudo aconteceu. Minha cabeça dançava…”
Vídeo Anistia: o retorno dos exilados
Sem vergonha da utopia: conversas com Betinho, p. 157
O Ibase nasceu de uma ideia do Carlos Afonso, que me escreveu uma carta quando a gente estava no México dizendo o seguinte: ‘olha, dado que a anistia vai acontecer e nós vamos voltar mesmo, por que a gente não faz um instituto no Brasil para estudar políticas governamentais?’ Essa foi a primeira ideia do Ibase. Formulamos o projeto, eu cheguei com ele e comecei a discutir a ideia.”
Revista Teoria e Debate nº 16
Eu descobri um vírus que não está isolado em laboratórios, que o vírus do medo, que o vírus do medo da Aids. Esse vírus já se propagou pela humanidade inteira. (…) E é esse vírus que está mudando o comportamento das pessoas, em alguns casos de forma absolutamente irracional.” ‘Em 1985, um hemofílico daqui, que era médico, voltou ao Instituto Pasteur, reuniu todos os hemofílicos e disse: “Olha, existe a Aids. Eu estou contaminado e vocês todos devem estar contaminados”. Meu irmão, o Chico, estava nessa reunião, foi um pânico geral. Então, eu calculei… bom, a minha chance é 10%, e eu fiquei segurando esses 10% um tempo. Até que em 1986 eu resolvi tirar a limpo.’ ‘Assim como todo brasileiro, eu vejo televisão. Depois de um dia de trabalho intenso, cheguei em casa e liguei a TV para ver os noticiários, quando fui pego de surpresa. Aparecia na tela um jovem que dizia ter sido tuberculoso, mas que estava curado. Respirei aliviado. Uma jovem dizia que tinha câncer e que se curou. Fiquei mais animado ainda com o progresso da medicina. Logo entra um jovem, olha para mim e diz: “Eu tenho Aids e não tenho cura!’
Programa Roda Vida, em 14/12/1987
Programa Roda Vida, em 23/12/ 1996
Betinho, artigo “Confesso que estou vivo”
Eu acho que o assistencialista não quer acabar com a miséria, ele quer perpetuá-la de outra forma. Na verdade ele é uma espécie de gigolô da miséria e não quer promover quem ajuda. Eu acho que a solidariedade é uma coisa completamente diferente. ‘No combate à fome há o germe da mudança do país. Começa por rejeitar o que era tido como inevitável. Todos podem e devem comer, trabalhar, obter uma renda digna, ter escola, saúde, saneamento básico, educação, acesso à cultura. Ninguém deve viver na miséria. Todos têm direito à vida digna, à cidadania. A sociedade existe para isso. Ou, então, ela simplesmente não presta para nada.’
Programa Roda Vida, em 23/12/1996
Ética e cidadania, p. 34
Sem medo de exagero, pode-se dizer que foi a primeira vez na História que as empresas do setor público se reuniram para atuar em comum, produzir sinergia em nome da solidariedade.
Estado de São Paulo
É uma alegria, porque meu nome ganhou dimensão com a campanha contra a fome e a miséria. Se sair – o que considero muito difícil – vai reforçar muito a campanha.”
Betinho comentando sua indicação ao Nobel da Paz, Folha de S. Paulo, 29/01/1994
Eu acho que hoje sou uma pessoa que acredita firmemente na democracia. Não como simplesmente um sistema político, mas como um conjunto de valores e princípios que devem penetrar todas as relações.
Programa Roda Viva, 23/12/1996
A verdade é que sempre vivi sem tempo, contra o tempo, apesar do tempo…”
O olhar do outro, carta de Betinho a Maria Nakano. Em Estreitos Nós, p. 13
“Eu acho que passei a ter uma visão muito natural da morte. Ela, para mim, não está associada a nenhum fato extraordinário. Eu não tenho nenhuma expectativa, não faço especulação sobre o além. Se ele existir, para mim vai ser uma tremenda surpresa. Aí eu vou encontrar com o Henfil, com o Chico, eu vou saber quem está no céu, quem está no inferno, que vai ser um prazer… Aí eu vou fazer a lista completa. Mas isso não é uma coisa que me preocupa. Eu não me preocupo em provar que exista ou não exista Deus. Acho que a vida é que é a coisa fundamental, viver é que é fundamental, e só existe mudança enquanto existe vida. Para mim a morte é o fim da mudança.”
Programa Roda Vida, em 23/12/1996