Em março de 1993, o professor Luiz Pinguelli Rosa e o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, encaminharam uma carta a um grande número de dirigentes de empresas estatais para uma reunião no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. Betinho sempre falava desta iniciativa como um ato de ousadia e loucura, onde dois cidadãos convocaram representantes governamentais para uma reunião onde o tema era a responsabilidade social das entidades. Betinho expressava como um ato de ousadia o envio de correspondência e com ar de espanto falava da reunião que contou com a presença de um grande número de dirigentes de empresas.

Estavam criadas as condições para a formação de uma interessante e pioneira estrutura integrada por entidades governamentais, federais, estaduais e municipais, ligadas a distintos ministérios ou secretarias, coordenados por um representante da sociedade civil, sem hierarquia, sem sede e com participação por adesão.

Por deliberação dos presentes, foi criado o Comitê de Empresas Públicas no Combate à Fome e pela Vida, mais tarde Comitê de Entidades Públicas, Coep: uma construção da Ética e da Cidadania.

Na reunião, o presidente de FURNAS, na época, Marcello Siqueira, sugeriu que o Betinho ficasse como coordenador do Comitê. Este, por sua vez, aceitou e contrapropôs que eu ficasse como Secretário-executivo e que cada dirigente fosse o representante de sua entidade.

Desde as primeiras reuniões do Coep, nós ficamos impressionados ao perceber a distância que existia entre as entidades. Espanta-me, também, até hoje, o que nós conseguimos fazer. Nós não temos nenhuma estrutura. Na verdade, o Coep é um espaço de articulação. Às vezes, me surpreendo com as coisas que conseguimos fazer. Na prática, nenhuma entidade está obrigada a fazer nada, é tudo por adesão. Mas eu acho que é mais do que isso. Acho que dá certo porque as organizações são feitas por pessoas e muitas vezes essas pessoas são inovadoras. Às vezes passa pela minha cabeça: o que as pessoas ganham ao fazerem uma coisa nova dentro das organizações, além de aborrecimento e chateação. Na verdade, as empresas não esperam aquilo delas. É uma certa indignação que as pessoas têm. Eu acho que o Coep é, também, uma rede de indignados. Pessoas que querem ver as coisas mudarem.

O Coep me mostrou a importância das pessoas para os projetos e o que significa cada um fazer a sua parte, como o Betinho de múltiplas maneiras nos mostrou e emocionou. Há que haver condições favoráveis na organização, mas a iniciativa das pessoas é fundamental.

Uma coisa que eu pude constatar, desde a criação do Coep, é a pobreza cultural de nossas instituições, no que tange à solidariedade e à responsabilidade social. Tem que haver uma explicação cultural para a desarticulação. O grande mal de nossa sociedade é a questão da desarticulação em todas as esferas: desarticulação da representação e desarticulação das entidades. A gente percebe muita gente fazendo a mesma coisa de forma separada. Muito desperdício de recursos. Eu acho que isso é uma coisa que está presente na cultura brasileira. O Estado brasileiro tem um potencial muito maior do que verdadeiramente exerce. Existe muito desperdício nas nossas organizações, não só nas estatais, como nas privadas também.

O simples fato de termos conseguido reunir 33 dirigentes de empresas estatais para formalizar a criação do Coep, em agosto de 1993, no Fórum de Ciência e Cultura, no mesmo espaço e para discutir um tema comum, já representou um grande avanço. Era uma lógica diferente. Nas primeiras reuniões, já dava pra perceber isso. As questões que eram levantadas não pertenciam à cultura daquelas entidades. Aos poucos, nós desenhamos uma agenda para o Coep com, basicamente, três vertentes. A primeira era a da mobilização. Era a discussão sobre o que cada organização poderia fazer. A partir daí, nós criamos várias estratégias para que cada entidade criasse seus próprios programas, tanto no âmbito das práticas administrativas, quanto no âmbito das missões específicas.

A segunda vertente foi criar espaços para a articulação através da formação de parcerias em torno de projetos comuns. Este é um espaço muito importante dentro do Coep. Finalmente, a terceira vertente é a questão da participação dos empregados enquanto cidadãos. É a discussão sobre a cidadania de forma institucional. Por que uma empresa treina seus empregados em informática ou em qualidade total, por exemplo, e não os capacita em cidadania? Por que não investir em capacitação da cidadania? Até para que os próprios empregados dessas organizações possam se tornar multiplicadores desse conceito. Há, inclusive, um projeto que estamos desenvolvendo, no momento, voltado para a formação de multiplicadores de cidadania.

O grande desafio que existe para a democracia brasileira é estabelecer a cidadania. A cidadania não pode ser um privilégio de alguns. Ela não existirá enquanto não for para todos. Eu acho que esse é um problema sério no Brasil de hoje. A comunidade tem que assumir o seu papel. Nós temos que dar condições, possibilitar que as pessoas demandem os seus direitos.

Voltando à questão das parcerias, nós percebemos que hoje conseguimos através dessa complementariedade das ações das entidades fazer um sem número de projetos, o que mostra que, se houver empenho, muita coisa pode ser feita. Aqui em FURNAS, por exemplo, dentro dessa linha do uso das terras públicas. Tanto se discute a questão da reforma agrária, enquanto existem tantos espaços públicos disponíveis. O processo de privatização não toca nesse problema. Na verdade, poderia estar em discussão a questão do uso das terras da Rede Ferroviária Federal, da Vale, da Light, etc., no processo de privatização, por exemplo.

O cooperativismo é outra prática a ser estimulada. Essa é uma linha em que o Coep tem apostado muito. Nós temos a bela experiência da Fiocruz com a comunidade de Manguinhos. Para se ter uma idéia, a cooperativa que funciona lá é hoje um dos melhores clientes da agência local do Banco do Brasil. Na verdade, com a criação da cooperativa, surgiu uma economia local. Hoje, aquela comunidade está discutindo suas próprias soluções. Não é só a questão da renda. A comunidade conseguiu se organizar em torno de um objetivo. Dentro da comunidade de Manguinhos existe hoje um pólo ativo. A experiência da Fiocruz na comunidade de Manguinhos nos aponta uma importante saída para a desigualdade do nosso modelo de desenvolvimento: o encontro do mundo organizado, da Fiocruz, com a comunidade desorganizada de Manguinhos, dando condições para o fortalecimento e a autossustentabilidade do desenvolvimento da comunidade. Mostrou-nos também a importância do trabalho e da renda como indutor fundamental da organização, da autoestima comunitária e da cidadania.

Infelizmente, o cooperativismo ainda não deslanchou aqui como em outros lugares do mundo. O cooperativismo no Brasil pode ser uma alternativa para a falta de emprego, não como uma forma de substituir as conquistas do trabalhador, mas sim como uma alternativa para aqueles que nunca tiveram carteira de trabalho, para os excluídos de qualquer benefício do mundo oficial.

O Coep tem tido um apoio importante do Comunidade Solidária, principalmente através de Anna Peliano e de D. Ruth Cardoso, assim como teve do Consea, de seus conselheiros e principalmente de seu Presidente, D. Mauro Morelli, e tem se mostrado um importante instrumento de articulação com a Ação da Cidadania e com as ações do governo.

Gerar soluções que incluam as comunidades não significa necessariamente assistencialismo, ainda que a assistência seja fundamental para o desenvolvimento social e para a redução das desigualdades. Existem soluções de inclusão que podem implicar aumento de receita para as empresas. Gerar renda para as comunidades possibilita seu acesso como consumidores a bens e serviços. Falta mais empenho para gerar soluções que atendam às empresas e também às comunidades.

Outro aspecto relevante na atuação do Coep é o balanço social. O Comitê já vinha trabalhando nessa idéia há muito tempo. O Coep foi um dos precursores desse debate. Desde 1995, já pensávamos como avaliar o desempenho de uma empresa sob o ponto de vista social. O balanço social acabou sendo direcionado para a empresa privada. Acho que é preciso criar formas de dar visibilidade ao desempenho de uma entidade pública. Precisamos criar mecanismos que possibilitem com que a sociedade possa avaliar como uma entidade pública está cumprindo sua missão, seus benefícios secundários e a eficiência de sua gestão.

Nada disto teria sido possível sem o estímulo provocante, apaixonado e alegre do Betinho, um dos criadores e último presidente do Conselho Deliberativo do Coep. O Coep não existiria sem o Betinho e a ele rendemos nossa homenagem.

* Extraído do Livro: PEITER, Gleyse (coord.) Mobilização: Betinho & A Cidadania dos Empregados de Furnas. Rio de Janeiro: Comitê Furnas Ação da Cidadania, 1998.

Herbert de Souza

Não é por falta de diagnóstico e de conhecimento técnico e científico que as casas desabam e as pessoas morrem durante as chuvas fortes no Rio de Janeiro. Já no século XVIII foi feito o primeiro diagnóstico sobre temporais na cidade. Desde então, temos produzido análises cada vez mais acuradas, mais complexas e mais científicas.

Mas de pouco serve tanto saber, diante da imprevidência do Poder Público, que nunca assistiu de forma decidida a questão das enchentes e da relação entre população, meio ambiente e catástrofe. O Poder Público chega sempre como bombeiro, nunca como o administrador que previne para que o pior não aconteça. Só aparece para socorrer as vítimas anunciadas, enterrar os mortos anunciados. E, no entanto, a verdade é que nenhum prefeito pode escapar do  problema. Ou ele o enfrenta, ou o problema cai na cabeça dele.

Não devemos culpar apenas os governantes. Temos de reconhecer o que há de imediatismo e irresponsabilidade na própria sociedade civil. Todos sabemos que o Rio de Janeiro é um Rio de muita chuva. Guardamos na memória catástrofes repetidas ano após ano e estamos cansados de saber que não adianta gritar na hora que o morro está deslizando e a casa caindo. Mas, antes das chuvas agimos sempre como se nada pudesse acontecer.

É por isso que a questão da prevenção e do controle dos efeitos dos temporais no Rio de Janeiro tem que entrar na agenda permanente de atividades da população e dos políticos. Cada habitante desta cidade precisa estar envolvido com o assunto, seja para atitudes tão simples quanto evitar jogar seu lixo em local impróprio; seja exercendo pressão permanente e contínua sobre a Câmara Municipal, o prefeito e a mídia, para que não tratem do problema só quando este já se transformou em desastre.

Eu gostaria de dar um depoimento pessoal sobre a experiência em Toronto, cidade canadense onde vivi mais de quatro anos. São seis meses de inverno brutal, com precipitações de neve que formam camadas de 1,5 metro de altura. Assisti várias tempestades de neve por lá. Algumas tão violentas que obrigavam a população a ficar três dias inteiros em casa. No entanto, jamais ouvi falar de catástrofes provocadas pela neve. Toronto é uma cidade organizada para enfrentar todos os anos aquele fenômeno. Por isso, consegue manter preservados os bens da sociedade e as vidas humanas.

Por que não podemos nós também termos isso no Rio de Janeiro? Temos o conhecimento científico, temos o conhecimento histórico, temos propostas e capacidade de fazer. Trata-se, portanto, de uma questão essencialmente política. Para os políticos e para a sociedade civil, que é a chave da solução do problema.

Este Seminário é uma excelente oportunidade para refletirmos sobre isso e colocarmos essas questões no centro do debate político. Para que um dia possamos olhar para cima, ver as nuvens negras se formando e dizer: “– Que bom estamos preparados!”

Vale destacar, de início, antes de falar sobre a experiência da Fiocruz na Ação da Cidadania, a atuação do COEP. É uma iniciativa rica, no sentido de integrar diversas instituições públicas que, isoladamente, realizavam ações de desenvolvimento da cidadania. O COEP conseguiu juntar as principais entidades públicas e Furnas exerceu um papel nesse processo, já que o grande impulsionador do Comitê é a secretaria-executiva, que está em Furnas. A atuação desta secretaria é fundamental para o sucesso do COEP, pois ela tem um caráter extremamente participativo e democrático, o que é bastante estimulante.

Nós começamos a trabalhar desde o primeiro dia da criação do Comitê, no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, lá na Praia Vermelha, pois a Fiocruz aderiu imediatamente ao movimento pela cidadania. A partir daí, iniciamos o trabalho junto à comunidade que nos cerca. Estamos localizados numa região periférica, socialmente falando, na chamada Zona da Leopoldina e, dentro da Leopoldina, numa região conhecida por Manguinhos, que possui uma comunidade de cerca de 45 mil pessoas, das quais umas 35 mil residem em favelas, que cercam a Fiocruz.

Apesar de todas essas comunidades terem suas associações de moradores, os problemas são grandes, como desemprego, violência, abastecimento de água e esgotamento sanitário precários, entre outros. Nós estamos há 30 anos trabalhando nessa comunidade através de um Centro de Saúde Escola, mantido pela Escola Nacional de Saúde Pública, que faz o atendimento clínico e de apoio global na área da saúde, onde os nossos alunos aprendem a administrar, planejar e avaliar serviços de saúde.

Durante a transição do Governo Itamar Franco para o de Fernando Henrique Cardoso, nós percebemos um claro agravamento da questão social, tanto que se criou o Consea, na época. O COEP é, também, dentro da Ação da Cidadania, uma iniciativa que procura juntar o que a sociedade tem de melhor no sentido de combater a degradação do quadro social em geral.

Uma das coisas que vínhamos observando, através de um projeto chamado Universidade Aberta, era que o desemprego ou a baixa remuneração do trabalho eram as situações mais críticas.

Num determinado momento, coincidindo com a criação do COEP, houve um grande problema, que foi a exacerbação da violência no Rio de Janeiro e, principalmente, na nossa área. Nessa ocasião, quando eu ocupava interinamente a presidência da Fiocruz, convidamos a comunidade, que for representada por 70 pessoas, para uma reunião de avaliação da situação. A Fiocruz era alvo de tiros e isso foi amplamente divulgado pela imprensa na ocasião. Nós vivíamos aqui acossados. Nossas janelas tiveram que ser protegidas com chapas de aço resistentes a balas de fuzis AR-15.

No encontro com a comunidade, ficou claro que nós precisávamos criar uma alternativa na relação da Fiocruz com seus vizinhos. A comunidade deixou evidente que, em hipótese alguma, não tinha interesse nessa violência contra a Fiocruz e explicou que o que estava acontecendo era consequência de uma guerra entre grupos rivais de traficantes.

Organizar alternativas de emprego com a criação de um polo dinâmico, do ponto de vista econômico, foi a solução que saiu da reunião com a comunidade. Daí surgiu a ideia da criação de uma cooperativa que viesse, no espaço de seis meses que transcorreria entre essa reunião e o final do ano de 1995, substituir uma empresa prestadora de serviço na área de limpeza e jardinagem. Com isso, a Fiocruz reduziu em 15% as despesas que ela tinha por ano com limpeza e jardinagem e cada pessoa passou a ganhar, em vez de um salário mínimo que a antiga empresa pagava, o equivalente a 2,8 salários mínimos. Imaginem o que representa isso num universo de aproximadamente 800 pessoas envolvidas. São quase 270 mil reais que ingressam mensalmente na economia da comunidade.

Além disso, houve uma resposta imediata. Primeiro, pela acomodação do próprio tráfico. Depois, pelo compromisso por pressão da comunidade, que passou a ter vantagens com a Fiocruz, de preservar a instituição de qualquer violência. Com isso, formou-se um processo muito rico de interação entra a comunidade e a Fiocruz e constituiu-se a cooperativa, com o apoio da Universidade Aberta, que procura trabalhar com pesquisa participante, que traz a comunidade e vai até ela num trabalho compartilhado.

A Fundação e a Gerência de Cooperativismo do Banco do Brasil apoiaram financeiramente o projeto com 18 mil reais e trouxemos a experiência do Instituto Superior de Cooperativismo da Universidade Federal de Santa Maria; abrimos um curso de cooperativismo e estimulamos a organização da primeira diretoria apoiada pela Fiocruz. Hoje, ela é uma empresa privada de posse coletiva, com um conselho constituído pelas associações de moradores.

As pessoas entram na cooperativa indicadas pelas associações de moradores que identificam as piores situações sociais e econômicas. A pessoa entra, faz um curso de cooperativismo, de limpeza de laboratório, de jardinagem, de compostagem, enfim, ela tem toda uma formação profissional. Hoje, a cooperativa, além de limpeza e jardinagem, criou uma área de corte e costura, que emprega 50 mulheres e adolescentes, que fazem os uniformes da própria cooperativa e vendem os uniformes para outras empresas. O Comitê da Cidadania da Fiocruz doou 20 máquinas para desenvolver essa atividade.

A cooperativa começou a atuar também, desde setembro de 1996, na manutenção geral predial, executando serviços de eletricidade, de pedreiro, entre outros. Em abril deste ano, eles conseguiram fechar um contrato com a UFRJ para a higienização e limpeza de livros das bibliotecas, um serviço bastante especializado. Aos poucos, eles vão ampliando seus serviços e a clientela.

Além disso, a cooperativa possui um fundo social destinado a amparar o cooperativado que ficar temporariamente desempregado num período de dois a três meses, uma espécie de seguro-desemprego. Tem um outro fundo para a pessoa que decide sair da cooperativa por motivo de mudança, por exemplo. Uma espécie de fundo de garantia formado pelo dinheiro que a pessoa colocou ao entrar para o sistema. Existe ainda auxílio-doença, para os casos de gravidez ou um problema qualquer de saúde.

E agora, eles criaram, também, dentro do fundo social, uma parte destinada à cultura, lazer e educação. A diretora de um Ciep da área cedeu as instalações, à noite, para 150 pessoas da cooperativa fazerem um curso supletivo de primeiro grau. Eles descobriram que o Viva Rio, com a Fundação Roberto Marinho, está criando oportunidades para a instalação de postos do Telecurso 2000 aqui. É uma dinâmica impressionante. Criou-se uma instituição que hoje responde pela orientação social dessa comunidade de forma potente. E a Fiocruz, por sua vez, como órgão público que utiliza os serviços dessa empresa, está se beneficiando porque caíram os custos que ela tinha com esse trabalho e porque a qualidade também melhorou significativamente. A queda na rotatividade da mão de obra é uma das razões; a outra, é o sentimento de propriedade e o compromisso dos cooperativados.

Eu quero destacar a participação do COEP nesse processo todo. Foi o COEP que promoveu assinatura desse convênio em Furnas, numa reunião dos presidentes das empresas, com a presença de Dona Ruth Cardoso, Anna Peliano e do Betinho, que assinaram como testemunhas do convênio entre a Fiocruz e a comunidade de Manguinhos, registrando, portanto, em documento formal, que vai ficar para a história, que o COEP foi um mentor muito forte desse projeto.

Já existe um projeto de lei no Congresso autorizando os órgãos públicos federais, estaduais e municipais, que desejarem, a estimular a constituição de cooperativas populares de trabalho e aproveitar o serviço dessas cooperativas de forma terceirizada. Esta é uma maneira de realmente desenvolver a cidadania, criar novos agentes econômicos, não da forma tradicional do regime capitalista. O cooperativismo é fundamentalmente uma ideia de economia social.

Com a aprovação desse projeto de lei, as entidades públicas terão autorização para estimular a criação de cooperativas de trabalho em sua região, contratá-las por um período probatório e, ao mesmo tempo, de apoio, de um ano, renovável por mais um ano e, a partir daí, abre-se um processo de licitação comum. Assim como o Governo apoia quem quer construir uma fábrica, por que não apoiar os segmentos mais excluídos? Se o Estado brasileiro apoia um estrangeiro que quer montar uma fábrica de automóveis no país, por exemplo, porque não apoiar a própria população pobre a se organizar em cooperativas e ter um acréscimo de qualidade na sua cidadania? Isso não exclui as empresas que estão aí, já constituídas, de continuar prestando seus serviços, apenas incentiva a criação de empresas de caráter popular.

Um outro grande problema que nós temos aqui é a questão habitacional. Nessa região, estão localizadas várias favelas às margens de rios altamente poluídos. A própria comunidade resolveu organizar uma cooperativa de produção de material de construção e prestação de serviços de construção civil. Essa cooperativa vai produzir material de baixo custo e de boa qualidade, adaptados ao tipo de habitação popular, além de materiais para infraestrutura de água e esgoto e urbanização de uma maneira geral. A Companhia Estadual de Habitação, a Cehab, e o Favela-Bairro da Prefeitura, por exemplo, ao tomarem conhecimento dessa ideia, propuseram formas de ação que, juntas, dão uma grande força. A cooperativa habitacional a ser criada, segundo o convênio, utilizaria os serviços e compraria o material da própria cooperativa da comunidade. Isso cria um círculo virtuoso. O cooperativismo passa a ser o fator dinâmico da economia dessa região menos favorecida.

Com base na nossa experiência, o Hospital Universitário Pedro Ernesto, da UERJ, procurou a Incubadora de Cooperativas da UFRJ, criada também sob inspiração no nosso trabalho, e instalou uma cooperativa com 80 pessoas na comunidade da Mangueira para prestar serviços no hospital.

Outro aspecto importantíssimo da Ação da Cidadania é a questão do balanço social. Aliás, mais uma dessas iniciativas iluminadas que o Betinho teve. No ano passado, nós já tínhamos definido que duas coisas importantes deveriam acontecer em relação às entidades públicas este ano: a primeira seria a radicalização da responsabilidade social das empresas públicas naquilo que dissesse respeito ao seu objetivo imediato; a outra seria a criação de uma O&M da Cidadania.

No primeiro caso, citaríamos, como exemplo, os Correios que, além de manter, deveria estimular e divulgar a carta social, criada no Governo Itamar Franco, que permite a gente muito pobre se corresponder com seus familiares. Outro exemplo: a tarifa diferenciada para consumidor de energia elétrica. Enfim, “n” iniciativas estatais das empresas públicas que poderiam incentivar a inclusão de um maior número de consumidores. Na medida em que você oferece produtos diferenciados para vários segmentos sociais, você está incluindo e transformando em consumidor um excluído. O balanço social que estamos imaginando é que as empresas possam radicalizar seu compromisso dentro da missão específica que cada uma tem.

Além disso, faria parte do balanço social, também, uma série de iniciativas que nós sugerimos no Coep que é a O&M da Cidadania. Do mesmo jeito que temos a O&M, digamos assim, burocrática, que obstaculiza tudo, como a Lei 8.666 que favorece as grandes empresas na disputa de licitações, as entidades públicas poderiam estimular o pequeno e o microempresário nas compras. A publicidade das grandes empresas também poderia estar acoplada a projetos sociais, fazendo o marketing social e, dessa forma, melhorando a imagem dessas empresas junto aos consumidores. Enfim, poderiam ser tomadas várias iniciativas que, além do aprofundamento da radicalização das ações sociais no âmbito específico da missão das empresas, somar-se-iam a essas outras iniciativas que comporiam o chamado O&M da Cidadania.

O importante é que essas iniciativas têm sustentabilidade. Nós, do COEP, queremos marcar bem isso. São sustentáveis porque aumentam o número de consumidores. Também são sustentáveis porque melhoram a imagem da empresa pública junto à população em geral. A maioria dessas ações é viável economicamente. Só que elas não estão na cabeça do dirigente público convencional e conservador. Isso é para o novo dirigente público. É para aquele que quer ver a sua empresa sustentável e que, simultaneamente, promova a inclusão e não o aumento da exclusão social.

A iniciativa da Fiocruz no campo do cooperativismo, que é uma das muitas iniciativas do COEP, mostra isso. É possível reduzir custos no setor público, incluindo uma comunidade que se encontra totalmente à margem da sociedade, criando uma dinâmica de empresa que caminha para a sustentabilidade com outras empresas-cooperativas, que hoje já não dependem mais da Fiocruz.

*Texto extraído do Livro: PEITER, Gleyse (coord.) Mobilização: Betinho & A Cidadania dos Empregados de Furnas. Rio de Janeiro: Comitê Furnas Ação da Cidadania, 1998.